17 novembro 2011

Lendo o mano mais velho

Como tinha já pensado há uns tempos aqui, e como tinha medo de não ter pachorra, pedi ao JC, especialista neste autor, que me emprestasse um livro "fácil".
Estou a ler o Livro de Crónicas e estou a achar a maior das graças.
Gosto da sua maneira de escrever, ao sabor do pensamento e passando de umas  coisas para outras, tal como conversamos.
Acho que deve ser um homem amargurado, vivendo na estratosfera, imbuído nos seus pensamentos e nas suas memórias da infância, que o marcaram como a nós todos, imensamente.
Há crónicas muito bem conseguidas, outras nem tanto. 
A maior parte é interessante e admira-me como ele se consegue pôr, tão bem, na sua própria pele como na de mulheres de meia-tigela, vivendo na Amadora ou Chelas, como na de rufias, gente vulgar, homens enganados, mulheres sovadas e até de malucos, do Hospital Miguel Bombarda.
E... volta sempre a Benfica, onde nasceu e cresceu e ao berço, onde, tenho impressão, gostaria de voltar....
Tenho sorrido, tenho rido e tenho gostado imenso de ler estas crónicas.
Quem me dera saber escrever assim...!

Para abrir o apetite de quem me leia, deixo aqui uma delas:


"O grande homem

    Soube que era um génio quando comecei a encontrar o romance nas montras das livrarias; quando o retrato principiou a aparecer nos jornais; quando dei a primeira entrevista à televisão. Consciente da minha celebridade e do meu talento pareceu-me injusto não sair para a rua de pé, em carro descoberto, cercado por guarda-costas de óculos ray-ban, a mostrar-me e a abençoar.
     Decerto que ao passar, num cortejo lento com motociclistas à cabeça, os homens tirariam o chapéu a persignarem-se, vergados de respeito, decerto que algumas velhotas ajoelhariam a rezar. Convicto da minha fama e da admiração dos contemporâneos resolvi, como era agosto, oferecer à Praia das Maçãs a dádiva da minha presença, seguro de aplausos, autógrafos, interjeições extasiadas e gritos de fãs à beira do desmaio.
     Cheguei por alturas do almoço após horas e horas numa bicha de automóveis domingueiros obviamente repletos de leitores entusiastas e parei no restaurante do Augusto onde uma multidão de súbditos se debruçava para o cherne, pronta a aclamar-me no fervor das paixões ilimitadas. Ninguém pareceu dar pela minha entrada: nem um maxilar deixou de mastigar o bitoque, nem um nariz emergiu do galheteiro para me observar com pasmo, e quando eu, agastado com a incompreensível distracção das pessoas, tossia a chamá-las, a voz do Augusto veio lá do fundo, do balcão, a apontar-me num brado que fez tilintar de susto os copos de Colares e sobressaltou a hibernação das lagostas a mancarem nos  calhaus do aquário
     - Olha o Antoninho! Dei tanto pontapé no cu daquele gajo!
     Meia dúzia de pálpebras subiram dos grelos, desinteressadas, e o Augusto a aplicar-me palmadas que me desconjuntavam as costelas
     - O menino a entrar na piscina pelo arame para não pagar e eu que fazia a segurança a correr atrás de si que é lá isso seu sacana? Ricos tempos.
     Apesar do precedente de colegas ilustres
     (Villon, Genet)
     embatuquei. E o Augusto, a empurrar-me com as palmas gigantescas para a mesa, ao lado dos caranguejos e das lagostas de um careca enfezado.
     - E aquela tarde em que você deu uma sova aqui no Zé Tó no ringue de patinagem? O menino era lixado. Muito pontapé lhe dei eu nesse cu. Ricos tempos.
     Eu não recordava a sova nem o Zé Tó, mas o enfezado que parecia guardar uma lembrança amarga resmungou a encostar-se ao aquário, como para se proteger de um novo estalo
     - O tipo tinha a mania que jogava bem à bola mas no torneio da praia só deu frangos.
     à esquerda do enfezado um homem sem dentes que não reconheci soprou do fundo do bagaço num rangido lúbrico
     - A mãe do menino é que tinha umas criadas que faz favor. Cada perna...
     as pálpebras dos clientes regressavam aos grelos e o Augusto baixinho, para a mulher que fritava peixe-espada o não escutar da cozinha
     - Boas
     e o enfezado vingativo
     - Ele não aproveitou nada daquilo era um anjinho era um artolas. O Casimiro do talho papou-as a todas.
     E dos longes do passado, como num sonho, veio uma motorizada com um capacete em cima a rondar-nos a casa cheirando a alcatra, enquanto o Augusto, enternecido, me continuava a martirizar os ossos num rodopio de saudade
     - O que é que faz agora seu maroto?
     e eu encolhido, humilhado, num fiozito de voz, surpreso com a extensão da sua ignorância
     - Escrevi um livro
     o enfezado, triunfal
     - As anedotas do Bocage, aposto
     agarrei-o pelo colarinho na ideia de o mandar fazer companhia aos lavagantes e o Augusto, orgulhoso, a apontar-me aos barris de cerveja
     - Sempre à porrada sempre na confusão. Muito pontapé lhe dei eu naquele cu
     um dos comensais, aborrecido, puxou uma espinha do beiço e fitou-me com ódio
     - Mande o seu menino embora que a gente quer comer em paz.
     A caminho da porta compreendi com raiva que os portugueses não me mereciam. Pensei em emigrar, em pedir asilo político na Embaixada da Colômbia, em suicidar-me com o remédio das baratas. Já no carro ainda vi o Augusto a acenar-me, ainda escutei o enfezado.
     - Não te esqueças de me mandar as anedotas do Bocage
     e preparava-me para arrancar quando um velhote abandonou a espetada e avançou a correr para mim a acenar o guardanapo
     - Um momento um momento
     afinal alguém me lera, alguém me respeitava, alguém sabia quem eu era. Desliguei o motor, preparei o sorriso do autógrafo e o velhote debruçado para mim
     - O senhor não é por acaso...
     eu a pensar Até que enfim
     - Sou sou
    e ele, iluminado
     - ... o sobrinho do barbeiro?
     Deve ter sido por causa do clima
     (sinceramente não encontro outra razão)
     que nunca mais voltei à Praia das Maçãs."

António Lobo Antunes
in Livro de Crónicas - -  págs: 141-143
Publicações D. Quixote, 1ª edição - 1998

    

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