De Luz para Luz
Nunca comerei o seu arroz de polvo com tortilha.
Nunca provarei as suas queijadinhas.
Nunca ouvirei os seus conselhos.
Nunca saberei o que é estar horas a conversar consigo.
Nunca irei à Covilhã visitá-la.
Nunca saberei como era inteligente e culta.
Nunca respeitarei a sua disciplina.
Nunca saberei a força que tinha.
Nunca estarei de mãos dadas consigo.
E nunca sentirei o calor dos seus beijos.
Mas, felizmente, os meus pais sim. Comeram, provaram, ouviram, souberam, foram, respeitaram, estiveram e sentiram.
Até sempre,
A bisneta homónima,
Luzinha.
Gonçalo, Rita e Luzinha Morais Leitão
Lisboa, 21 de Dezembro de 2003
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UM DOMINGO À NOITE
Enquanto desço para o viaduto Duarte Pacheco, já meia adormecida da carneirada do trânsito domingueiro, olho para a direita com saudades e vontade de acabar mais um fim-de-semana em amena cavaqueira.
Embora diferentes das memórias da Quinta da Barreta, com aqueles lanches de torradas com manteiga e açúcar, preparados por uma tropa bem comandada, estes jantarinhos eram mais reais com uma conversa quase tão doce.
- “Olá avózinha” olhando não para o lobo mau mas para uma velhota cada vez mais pequena, sentada no sofá encarnado, entretendo-se com a televisão aos altos berros...
- “Olha a minha Tutasinha” rasgando-se um sorriso que nos fazia sentir únicos.
- “Está melhorzinha ?” consciente que naquela idade as maleitas já foram tantas, embora não fossem acompanhadas por muitas queixas.
- “Estou aqui entretida a ver o Marcelo, realmente ele fala muito bem, e pelo menos critica esta pouca vergonha; imagina tu que .....” com uma vivacidade surpreendente.
Sempre foi algo que admirou, os que falam bem parecendo com tal ser inteligentes.
Sentei-me relaxada e confortável, saboreando a minha actualização semanal com a análise acutilante mas sensata que também nos caracteriza.
De vez em quando interrompia o discurso racional, para nos derreter com um comentário emocional que provavelmente repetia a todos os outros 20 netos.
- “Tu realmente tens uma carinha linda. O teu Avô Amadeu sempre disse que eras a neta mais bonita e doce” agarrando carinhosamente as minhas bochechas entre umas mãos já nodosas de magras.
- “Ó Avó deixe-se disso e vamos jantar” já com o ego pronto para mais uma semana.
- “Então conta lá o que é que andas a fazer” enquanto se mudava, a custo, do sofá para a mesa.
- “Nada de especial, tenho continuado com as aulas de astrologia que têm sido divertidas. Olhe, hoje trouxe-lhe mais um livro que vai gostar” comecei a contar, sem o típico receio que todos temos de parecer diferentes aos olhos da família que nos aceita ainda que não nos conheça.
- “Sabes que gostei muito daquele livrinho sobre a Décima Revelação; é muito bonito e como as letras eram grandes ainda consigo ler. Tenho na minha cabeceira para de vez em quando ler uma das frases”.
- “Eu sabia que ia gostar; embora pareçam lugares comuns é sempre bom pensar nos assuntos numa perspectiva diferente. O que é que achou da forma como eles falam na reincarnação ?” perguntei eu já divertida a picar um bocadinho.
- “Sabes que o mais importante é a tua fé, independentemente da forma como se interpreta os escritos religiosos” arrematando o meu picanço com a sabedoria típica da velhice.
- “Pois é, a mim faz-me mais sentido a ideia de tudo no mundo ser uma forma de energia que sobrevive para além da sua mera exteriorização física. Parece que antigamente a bíblia falava de reincarnação e depois num dos concílios em Roma acharam que a possibilidade das pessoas se redimirem em vidas futuras atrasava mais a melhoria delas, em comparação com o imediatismo do inferno e do céu”.
- “Olha e os teus pais como é que estão?” perguntou, ainda com uma destria impar para desviar os assuntos que já não lhe interessavam tanto.
- “Estão óptimos, devem estar a jantar em Cascais”.
- “Sabes que o Kiko está a gostar muito de estar lá em Moçambique e no outro dia quando o teu irmão esteve cá a jantar, liguei-lhe porque estava com muitas saudades”.
- “Sabes que era um dos que me fazia muita companhia”, disse com os olhinhos tristes relembrando-nos do que deve ser o amor e apoio incondicional de uma família.
Teresa Gubert Morais Leitão (Tété)
Lisboa, 15 de Janeiro de 2003
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Nunca hei-de esquecer o Domingo de Ramos do ano de 2002.
Nesse dia estava em peregrinação até Fátima e lembro-me que durante toda a caminhada, as minhas orações foram dirigidas para a Avó Luzica. Rezei para que Deus lhe desse saúde, para que lhe desse coragem e forças para assistir ao casamento da Marta e do Rodrigo. Sem razão aparente, era a única pessoa por quem me fazia sentido rezar, naquele momento.
Quando, no fim desse dia, soube pelo Pai da morte da Avó, mal conseguia acreditar que fosse verdade. Senti-me revoltada com a partida que Deus ali me pregava. Como é que podia ser? No dia em que mais tinha rezado pela Avó, Deus a tinha levado para longe de nós?
Depois de alguns dias, decidi voltar para a peregrinação e fazer os quilómetros que me faltavam até Fátima. A minha única ideia naquele momento era tentar compreender o significado da morte da Avó, tentar perceber porque é que Deus não tinha ouvido as minhas orações.
Foi então que, com a ajuda do Padre Vaz Pinto, consegui perceber o sentido de toda aquela realidade. Sentido esse que me conforta e me faz aceitar a dor que senti naquela tarde de 24 de Março. Deus não só ouviu as minhas orações, como ainda as concretizou. Levou a nossa querida Avó para junto Dele, para junto do Avô Amadeu, do Tio Pedro e do Titó. Poderá ela estar melhor? Acredito que não.
Sei que apesar de toda a saudade, de toda a dor que sinto sempre que penso na Avó, sempre que me lembro das suas mãos a brincar nas minhas como tantas vezes fazia, no fundo sei que ela está bem, que está feliz e que de lá de cima está a olhar por todos nós, tal como sempre olhou enquanto esteve perto de nós.
Só nos resta agradecer a Deus a possibilidade de termos conhecido a nossa querida Avó, e pedir nas nossas orações para que saibamos aplicar nas nossas vidas todos os conhecimentos e sentimentos que ela transmitiu a cada um de nós individualmente.
Ana Rita Morais Leitão de Castro
Lisboa, 20 de Janeiro de 2003
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Querida Tia Ana:
Confesso que não sabia bem o que escrever sobre a Avó Luzica mas aqui vai um pequeno texto que consegui escrever com a minha cabecinha e que espero que goste:
" Ainda hoje me sento a pensar em tudo isto que se tem passado na minha vida nos últimos meses e chego à conclusão de que muita coisa mudou, pelo menos em 2002. Um ano de alegrias, tristezas, gargalhadas, choros, enfim, um ano um pouco diferente de todos os outros que já tive, pois foi desde casamentos, nascimentos, despedidas, a uma das piores coisas que me aconteceu na vida, a morte da minha mais que querida Avó Luzica, uma pessoa em que penso quase todos os dias, seja por isto ou por aquilo, vem-me sempre à memória.
A Tia Ana pediu-me que escrevesse alguma coisa sobre a Avó Luzica e aqui estou eu, tentando descobrir as melhores palavras para descrever a enorme tristeza que me invade o coração, em recordar um dos muitos momentos que tive com esta senhora tão querida e especial ao longo destes quinze anos que já vivi e apercebi-me de que sempre tive a presença dela na minha vida, nem que fosse quando a visitava todos os fins-de-semana, quando acompanhava a minha mãe numa visita para lancharmos e conversarmos muito, muito, até à hora de jantar quando vínhamos para casa, com a certeza de na semana seguinte se repetir o mesmo feito, pois achava que a morte estaria ainda muito longe, embora mesmo quando estava doente pensava sempre para mim "amanhã já está boa" mas depois no dia seguinte estava igual, até que num dia melhorava, até uma próxima vez que estaria na cama e que precisava das consultas da mãe.
No próprio dia da morte, para mim um dos piores de toda a minha vida, se não o pior, quando a avó começou a sentir-se mal, estava em Évora e mal chegamos a Lisboa a avó já tinha morrido, o que me entristeceu pois não me pude despedir da minha querida avó.
Nos dias que se seguiram não acreditava ainda no que tinha acontecido e pensava sempre que se fosse a casa dela, a iria encontrar a ver televisão aos altos berros, com a frase na ponta da língua "Minha Isabelinha, deves estar cheia de fome, pede à Isabel que te faça um lanchinho".
Uma das maiores preocupações que a avó tinha, era sempre a fome.
Tinha que estar sempre satisfeita e só depois é que podíamos conversar. Talvez porque gostava de me ver a comer, não sei ao certo, mas o facto é que não queria que me faltasse nada.
Fui a neta com quem a avó viveu menos, principalmente porque no início vivíamos cada uma em seu lado, a avó na Covilhã e eu em Lisboa, logo as recordações que eu tenho são mais dos últimos anos, em que a avó viveu em Lisboa mais perto de mim.
Em Poucas Palavras digo que a Avó Luzica era uma das pessoas mais importantes da minha vida que deu mais que provas que era uma pessoa boa, para tudo e para todos.
Tinha uma qualidade que eu admirava muito nela: A sinceridade, a capacidade de ajuda e de se preocupar mais com os outros do que consigo, não só pelo facto de ser amiga e bem disposta mas como o facto bem concreto: As noites que ela passava a rezar por cada um da nossa família, rezando um terço por cada um não é mais do que prova da sua bondade??
Muitos beijinhos para a minha Avó Luzica, esteja ela onde estiver, sei que vai gostar do que escrevi,
a neta que a adorou, adora e sempre a adorará
Isabelinha
Isabel Morais Leitão Camarate de Campos
Lisboa, 26 de Janeiro de 2003
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Pediram-me para escrever sobre a Avó, e eu escrevo agradecendo:
Obrigada pelas queijadas de feijão.
Obrigada pelas empadas.
Obrigada por transmitir anos de tradição.
Obrigada por tão boas memórias da Quinta e da casa da Covilhã.
Obrigada por se ter mantido sempre interessada.
Obrigada pela preocupação.
Obrigada pela sua voz rouca.
Obrigada pela minha Mãe.
Obrigada por ser Mãe de uma família tão grande.
Obrigada pela sua oração.
Obrigada por ter vindo sempre cá a casa mesmo não gostando do cão!
Obrigada pelo cheiro da sua casa que era tão familiar.
Obrigada por tantas vezes me ter convidado para almoçar.
Obrigada por ter gostado tanto de viver!
Muitos beijinhos da sua neta que tem muitas saudades.
Kika
Cristina Morais Leitão Freitas da Costa
Lisboa, 27 de Janeiro de 2003
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Nunca me vou esquecer do dia em que chegou a hora da partida da minha avó Luzica. Não queria acreditar no que estava a acontecer. Então afinal de contas a minha avó não é eterna? perguntei a mim mesma surpreendida. Para mim, era um assunto que era óbvio, pois sempre pensei no meu imaginário, que teria sempre a avó do nosso lado. Era aquela pessoa que eu sabia, inocentemente, que tomaria conta da nossa família para sempre como um elo mãe de união.
Aquele dia foi mais que uma tristeza, um vazio.
Para compensar este vazio, penso muitas vezes que a avó está num sítio melhor, muito bem acompanhada e apenas a observar-nos de uma janela ligeiramente longe. No entanto, apesar de eu saber que nos está a ver, tenho pena de não sentir a sua presença em alguns passos da minha vida.
Apenas vivi 21 anos com a presença da avó mas acho que deu para perceber o seu espírito positivo, jovem e moderno que tanto nos dá saudade. Também a sua opinião sobre todos os assuntos e a magnífica capacidade de nos entender, são características que nunca vou esquecer junto com a imagem da avó Luzica que tanta falta nos faz.
Mariana Morais Leitão Camarate de Campos
Lisboa, 29 de Janeiro de 2003
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Não é fácil escrever sobre uma pessoa, mas torna-se fácil quando essa pessoa é especial, é única. Quando essa pessoa nos é próxima, quando é um exemplo para os outros, quando nos ensina, quando está presente. Por isso é fácil escrever sobre a Avó Luzica.
Avó Maria da Luz para uns, Avó Luz para outros ou mesmo Avó Luzica. Uma avó que conseguiu ser Mãe, ser mulher, ser irmã, ser cunhada, ser amiga, ser Avó e mesmo ser Bisavó..., exactamente da mesma maneira. Dando igualmente a uns e a outros! A estar presente na vida dos que a rodeavam, do mesmo modo...
Várias coisas me ensinou, várias ideias me transmitiu, vários conselhos me deu e muitos valores me passou. Porque sempre esteve presente.
E era isso que mais me fascinava na Avó Luzica. Era, nunca se esquecer de ninguém, nunca faltar a ninguém, educar todos que não são poucos e principalmente ajudá-los. Da mesma maneira.
Não vou falar no passado, porque sei que ainda está presente. Está presente nas nossas recordações e continua presente nas nossas vidas. Ao lado de Deus, a Avó Luzica continua a olhar por esta família, que construiu. Sinto que continua tão próxima como sempre esteve.
E, de vez em quando ainda sinto os “beijinhos no olho” que só ela me sabia dar....
Madalena Morais Leitão de Castro
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2003
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A minha Avó Luzica
Pensei escrever este testemunho sobre aquilo que a Avó Luzica me deixou e os valores que nos transmitiu.
Optei por passar para o papel a imagem que tenho da Avó.
É a imagem da Avó mais velhinha, mas foi desde que veio para Lisboa que mais convivi com ela.
É esta imagem de que me lembro todos os dias, que me acompanhará para o resto da vida e que espero conseguir transmitir aos meus filhos.
A Avó Luzica dos olhos espertos e da voz rouca.
A perna sempre traçada e as mãos compridas.
O anel preto da Avó Ana, os dedos a bater na mesa.
O cabelo sempre bem arranjado que ajeitava com a mão.
O terço na Rádio Renascença.
A conversa sempre actual sobre política, ou mesmo de futebol e ciclismo com os rapazes.
As confusões com os Euros: “Quanto é isso em dinheiro?”
Os beijinhos que me dava nos “meus olhos de azul prevenca”.
A frase que muito repetia: “Sê mais meiga para a tua mãe”.
As histórias antigas sobre a Covilhã.
O Jornal do Fundão recebido todas as semanas.
Os jantares em Campo de Ourique para reunir os netos.
As datas dos anos de toda a gente sabidas de cor.
A União da Família.
A Avó Luzica era acima de tudo uma avó forte, interventiva, informada e muito amiga.
Marta Morais Leitão de Castro Nascimento Rodrigues
Ferreira do Zêzere, 14 de Fevereiro de 2003
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Não conheci a Avó Luzica (ou conheci muito pouco) e quando comecei a namorar com a Marta já a Avó Luzica estava doente e “caída”. Mas sei agora o que perdi por não a ter conhecido tão bem.
A maior recordação que tenho dela, e que quero partilhar, é já posterior à sua morte (para grande pena minha). A maior recordação foi-me dada pelo Padre Feytor Pinto. Aquilo que o Sr. Padre disse da Avó Luzica, nas missas por ele rezadas depois da sua morte, só pode ser relativo a uma grande Senhora.
Alguém que sempre viveu para os outros e para Deus, para a família e para a comunidade onde viveu, para a partilha, para o amor e para a amizade.
Aquelas palavras comoveram-me bastante e fizeram-me imaginar a maravilhosa mãe e avó que a Avó Luzica concerteza foi. Porque quem diz o que disse sobre a Avó Luzica, só pode mesmo estar a falar de uma pessoa que muito amou e que muito foi amada.
E é esta a grande recordação que tenho da Avó Luzica e que para sempre vou levar comigo e tentar explicar aos meus filhos.
Gonçalo Amaral do Nascimento Rodrigues
Ferreira do Zêzere, 14 de Fevereiro de 2003
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A pessoa que mais marcou a minha infância e juventude foi a minha muito querida Avó Luzica. Foi sempre a minha referência de orientação, de conduta de vida.
Com ela senti verdadeiramente o que é amar os outros, respeitá-los e ajudá-los.
Com ela percebi e comecei a dar valor ao “estar disponível”. É a pessoa que conheci que mais se disponibilizou para tudo, que mais próxima dos outros esteve e que mais lhes deu.
Com ela aprendi a dar sem pedir nada em troca.
Bastava ver o seu sorriso quando oferecia alguma coisa, para perceber que ficava mais feliz ao dar que a própria pessoa que recebia.
A Avó Luzica foi uma pessoa essencial na minha vida que em todos os momentos, mesmo quando doente, me recebia com um sorriso e vontade de me mimar. Deu-me a conhecer os valores fundamentais da vida e procurou incuti-los com determinação em mim.
Quando me fui embora para Moçambique e fui despedir-me dela, chorou. Estava contente de eu ir, praticando o que de bom me tinha ensinado, mas ao mesmo tempo tinha pena de não me ver. Naquele momento, julgo que pensou para si própria que não me veria mais em Terra. Assim aconteceu.
Tenho pena de não ter estado com ela nos últimos meses da sua vida, mas sei que todos os dias me vê lá de cima sentada à braseira a fumar o seu cigarrinho e a comer as suas divinais empadas.
Sei que olha por mim, por isso, vivo feliz.
Francisco Morais Leitão Camarate de Campos
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2003
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Memórias da Avó Lúzica
A Tia Ana teve a brilhante ideia (para além de todo o trabalho que isto implica) de reunir num livro as nossas memórias da Avó Lúzica.
Fazem parte da minha infância (e não só) as memórias das Páscoas e dos Verões passados na Covilhã: o pequeno almoço tomado na camilha da sala, no inverno, com a braseira ligada, com torradas de papo-seco feitas na torradeira da Avó (não consigo fazer torradas que me saibam tão bem como aquelas), ou na cozinha, no meio da azáfama do fabrico de empadas e queijadas para o “ Centro Cívico”; os lanches de chá gelado no Verão, bebido em copos altos de cores, com colheres compridas, acompanhado de “palitos”, às vezes com a visita da Fernanda Camarate, ou da Zé Baltazar ou da M.ª José Pintassilgo; as idas às Meninas Jorges (será que é assim que se escreve?); as compras na “Polícia” ou na Praça; a missa em São Tiago; as procissões da Páscoa vistas das janelas da sala; o doce de abóbora (seria abóbora? só sei que era cor de laranja e com nozes), a geleia de morango, a marmelada; as brincadeiras na sala da costura e no sobrado; as visitas das criadas antigas vindas de longe com presentes. Podia fazer uma lista interminável destas pequenas coisas que fazem parte das minhas memórias da Avó Lúzica e de que nunca mais me esqueço.
Tenho muitas saudades daqueles tempos e de uma Avó que nunca deixou de acompanhar e de se preocupar com as nossas vidas, com os acontecimentos importantes e com aqueles que nem tanto, que sempre conheceu os nossos amigos e que sempre gostou de dar a sua opinião sobre o nosso aspecto, a nossa roupa, o nosso corte de cabelo, as nossas notas, o nosso emprego, o nosso marido, os nossos filhos, a nossa casa,...., apesar de nos últimos tempos termos deixado de lhe fazer a companhia que ela sempre nos fez.
Joana Morais Leitão Freitas da Costa Oliveira
Lisboa, 24 de Fevereiro de 2003
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Querida Avo Luzica,
A minha última carta para a Avó foi escrita no meu quarto de estudante em Chicago e ainda foi endereçada para o 2º Direito da Avenida António Augusto de Aguiar de aonde a Avó reinava a Covilhã. Havia mais de 6.000 quilómetros a separar-nos mas aquela folha de papel fez-me voar para o pé da avó, fazendo-me sentir como se estivesse sentado à braseira a ouvir as suas histórias sobre a infância dos pais, a política na Covilhã, os Alçadas e os seus demais temas preferidos.
Começo a carta de hoje sentindo falta da veia poética dos tempos estudantis e duvidando que o livro da tia Ana consiga chegar ao 2º Direito de onde a Avó estará certamente a reinar o Céu. Porém, começo-a com a certeza de que também me fará sentir mais perto da avó e com alguma esperança de que, juntamente com o resto do livro, ajudará o resto da família Morais Leitão a viajar para o pé de si, para dentro da braseira de onde as suas memórias nos continuarão a aquecer.
Para a minha família, essas memórias estão bem “quentinhas”. A Miana, que chamava à avó “a minha melhor amiga”, encarregou-se de manter fisicamente a sua presença por toda a nossa casa de Lisboa: a última carta da avó para Chicago está pintada no chão da nossa entrada e a primeira fotografia que vejo ao chegar a casa é da avó, sentada pensativamente nos bancos de pedra da Barreta.
E já que falo na Barreta, aproveito para admitir publicamente que, sempre que lá vamos, sucumbimos à tentação de recriar os rituais a que a avó nos iniciou: as regueifas, o cabrito assado, as farófias, as bicicletas, o burro a puxar a carroça, os piqueniques no rio, os passeios ao aeroporto depois do almoço, a ordenha das ovelhas ao cair da tarde, até as conversas vagas com o rendeiro sobre a horta. Os nossos filhos - a Terezinha, o António e o Luís - já não passam uma Páscoa sem um bom cortejo, devidamente mascarado e com as doze estações regulamentares.
Mas esse seu legado, que notamos de forma mais flagrante na Barreta, pode também ser sentido no dia-a-dia da família Morais Leitão. Não consigo deixar de pensar na avó cada vez que vejo a Maria a dar instruções a uma empregada, ou o Pai João a esbanjar gorjetas em hotéis e restaurantes ou mesmo o Miguel a deixar-se ficar à conversa na mesa depois do almoço. Só nos falta mesmo são as histórias à braseira.
Terminamos fazendo votos de que toda a família Morais Leitão possa voltar a ouvi-la à volta dessa braseira, e deixando-lhe um beijinho grande do seu neto, da sua “melhor amiga” e dos seus bisnetos,
Pi Miana Teresinha António Luís
Pedro Gubert Morais Leitão
Lisboa, 13 de Abril de 2003
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